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A China não vai se arriscar para defender a Rússia

O especialista e Professor Rodrigo Zeidan fala da relação da China e Rússia e como os primeiros não têm interesse pela guerra e outros tipos de dominação geopolítica no momento

china e russia Rodrigo Zeidan (Foto: NYU Shanghai)
por Redação abril 1, 2022
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A avaliação é de Rodrigo Zeidan, professor da New York University Shanghai e da Fundação Dom Cabral (FDC). Nesta entrevista, ele comenta o relacionamento entre os dois países e o papel neutro assumido pelos chineses. Zeidan também destaca a importância da Alemanha como grande consumidora de energia russa e como ela pode fortalecer a atual onda de sanções contra o governo de Moscou. Pesquisador sênior do Center for Sustainable Business (NYU Stern) e editor associado da Revista Brasileira de Finanças, Journal of Sustainable Finance and Investments e Journal of Economic Surveys, Zeidan também é colunista da Folha de São Paulo. 

Nós temos visto alguns analistas internacionais creditarem o ataque russo a uma reação às ações da OTAN na região. Você concorda com isso?

Rodrigo Zeidan: A OTAN não tem responsabilidade sobre essa invasão. É uma escolha russa ver o Ocidente como inimigo. Não estou dizendo que OTAN é uma organização inocente. Trata-se de uma organização defensiva que só existe para proteger o mundo de invasões como essa que estamos vendo na Ucrânia. O mundo estava de braços abertos para a globalização; para que a Rússia pudesse se inserir globalmente no comércio e nas finanças. A Alemanha, por exemplo, compra 40% de sua energia da Rússia. Os bancos russos operavam normalmente no mundo inteiro, ou seja, a Rússia fazia parte do sistema global até escolher atacar a Ucrânia. Ela atacou primeiro e não foi apenas a Ucrânia. Houve o ataque à Geórgia, o massacre na Chechênia e a primeira invasão da Ucrânia, na Criméia, em 2014. Essas não são ações defensivas; são todas ofensivas e foram escolhas da Rússia. A OTAN não tem responsabilidade nenhuma e nem outro papel nessa guerra que não seja o passivo. O papel ativo é da Rússia. Quem defende o discurso de que “não defendo o Putin, mas”; isso é um tipo de propaganda russa. Temos visto muito essa narrativa de que a Rússia está defendendo seus direitos. Ela sempre quis atacar a Ucrânia e nunca viu aquele país como um país independente de verdade. A prova está aí. 

Então, como devemos entender esse ataque? Faz sentido que ela se justifique como uma tentativa de reconstruir a ex-URSS ou ter uma Rússia mais fortalecida?

Rodrigo Zeidan: O processo histórico não tem uma só causa, ele é multicausal e acontece por “n” razões, desde a fragilidade da Rússia no mundo até a megalomania (de Putin). Ele não será o primeiro governante a achar que o país dele é mais importante do que de fato é. Vou ser bem sincero: não há nenhuma razão e não há racionalidade nessa ação. O primeiro mandato de uma guerra, de uma aventura militar, é ter um objetivo claro. Ninguém sabe qual é o objetivo da Rússia e nem ela anunciou qual seria. Anunciar como objetivo “desnazificar” a Ucrânia não significa nada. Primeiro porque a Ucrânia não é nazista e – segundo – que esse não é um objetivo militar. Ela não sinalizou que quer ocupar a Ucrânia e muito menos que deseja derrubar o governo atual, embora seja isso que pareça. Em resumo, nem os russos explicaram a causa, o que é muito estranho porque não se entra numa guerra sem dizer claramente o objetivo. 

Em 2014, por exemplo, na invasão da Criméia o objetivo era claro: retomar aquela região para a Rússia. Fizeram e pronto. Foi um ataque com objetivo claro. O ataque atual é um grande erro. Acharam que iria ser fácil, não foi e agora estão criando justificativas posteriores para explicar. O que mais explica isso é uma megalomania e um gigantesco erro estratégico. 

O erro estratégico está posto e a invasão já superou os 30 dias. Como sair desse impasse?

Rodrigo Zeidan: Esse é o problema. Para sair de um impasse é preciso ter atores racionais. Mas nós não sabemos o que os russos querem e não há como estabelecer cenários até que eles se expressem. É muito complicado. A Rússia tem uma vantagem militar muito grande e a única razão pela qual ela não avança é porque não está fazendo a estratégia de terra arrasada. Se ela usasse isso indiscriminadamente, venceria a guerra. E seria uma vitória de Pirro. Não se sai disso fácil porque as sanções atuais não vão ser retiradas imediatamente, nem que ela abandone essa operação, essa guerra. Provavelmente haverá a redução do acesso da Rússia aos mercados globais por mais de uma década. Ou seja, a Rússia está isolada. 

A fábrica de tanques militares teve que parar porque não tinha mais peças importadas. E não vai ter porque a Rússia vai manter negociações comerciais com meia dúzia de países. No momento, ela começa a vender energia, mas vários países europeus já anunciaram a retomada de projetos nucleares, por exemplo. Na verdade, tudo depende da Alemanha, porque os danos para a economia alemã – de deixar de consumir energia russa – seriam gigantescos. Mas se a Alemanha fizer isso no futuro os danos para Rússia serão maiores.

As sanções econômicas estão sendo efetivas, mas a compra de energia russa é um fator-chave para os europeus. Eles têm condições de fazer essa transição?

Rodrigo Zeidan: São duas questões. As sanções funcionam, mas não na velocidade que a sociedade precisa, pois são armas de longo prazo. Dão sustos e vão destruindo a economia russa aos poucos, mas não o suficiente para que a Rússia volte atrás. A decisão de sair da Ucrânia, no momento, é totalmente dos russos. 

Na verdade, tudo depende da Alemanha, porque os danos para a economia alemã – de deixar de consumir energia russa – seriam gigantescos.

E a questão energética? 

Rodrigo Zeidan: Não existe na Europa uma alternativa atual para substituir o gás natural russo. Não importa o tipo de energia – suja, limpa – etc. Obviamente, pode-se “fechar a torneira” e criar um racionamento. A economia de guerra faz isso o tempo todo. Se a Alemanha aceitar uma queda no PIB de 2% a 3% – que é um dano imenso, mas que dá para sobreviver – ela fecha a única grande linha de suporte em moeda estrangeira para a Rússia. Não acho que os alemães farão isso nos próximos meses, mas a grande questão é a mesma: a Alemanha claramente está buscando formas de diversificar sua matriz energética. E essa diversificação vai acontecer independente de qualquer atitude dos russos no curto prazo.

Os prejuízos no longo prazo serão grandes. A Rússia vai vender energia para quem, fora a China? E vai vender energia em rublos, em yuan? Ou seja, os danos são realmente permanentes ou pelo menos de grande prazo. 

A alegação de que a Rússia seria favorecida na adoção de outras moedas diferentes do dólar faz sentido?

Rodrigo Zeidan: Não faz o menor sentido. Só para se ter uma ideia, 80% do comércio entre Rússia e China era compensado em dólar ou euro. Usam-se moedas que todo mundo aceita. Hoje, euro e dólar são moedas de aceitação universal. Em grande parte, a contaminação da dívida russa de 1998, inclusive com o calote, o impacto maior foi sobre a Europa justamente porque os russos não estavam integrados ao sistema financeiro mundial. E tinha muito mais negócios com os bancos europeus. Isso não é mais verdade. Embora os bancos russos tenham mais presença na Europa, a economia deles se globalizou de certa maneira. As pessoas também acham que ter dólar é uma grande vantagem para os Estados Unidos. O único poder que eles têm nesse caso é o de impor sanções. E eles estão impondo sanções junto com a Europa. O grande problema para os russos é que não existe nenhuma outra moeda para se negociar que não o dólar ou o euro. Eles vão negociar em yuan? Não vai acontecer.

Você está baseado na China e tem uma visão privilegiada por isso. Como vê o papel dos chineses e a relação China e Rússia? 

Rodrigo Zeidan: As relações entre os dois países são muito complicadas. Eles assinaram, em 2001, um tratado de boa vizinhança que era para ter durado 20 anos e que foi renovado no ano passado. É bom lembrar que eles estiveram à beira de uma guerra nuclear na década de 1960. Chegou a haver invasão das fronteiras – então soviéticas – pela China em 1969. Em algum momento, Mao (Zedong) considerava a Rússia como o maior inimigo dos chineses, maior até que os Estados Unidos. Acusava a antiga União Soviética de imperialista comunista e de querer mandar no partido comunista chinês da mesma forma que mandava nos partidos comunistas dos países satélites. Então, essa aliança não é exatamente incondicional. 

Em 2001, quando eles assinaram o tratado de boa vizinhança, a economia chinesa era uma fração do que é hoje e o interesse chinês era ter acesso à fronteira tecnológica militar dos russos. Hoje, a economia chinesa é dez vezes maior que a russa. Ou seja, os russos têm uma economia talvez um pouco maior do que a de Shanghai. A China não vai arriscar seu posicionamento manufatureiro no mundo por uma aventura militar de um país que é uma fração do que foi e que não é mais uma fronteira tecnológica militar. A Rússia – para a China – é muito menos importante do que era há 20 anos. E há outra diferença: a Rússia vê o Ocidente como inimigo, mas a China vê o Ocidente como adversário. E isso é fundamental. 

Pode explicar melhor essa diferença?

Rodrigo Zeidan: A China não tem qualquer intenção de incursão militar no resto do mundo, ou seja, de militarmente enfrentar o Ocidente. Não faz sentido. O projeto de desenvolvimento chinês é um projeto nacionalista. Então, o que acontece? A China tem um pragmatismo maior. Há uma história de um estadista chinês com um embaixador europeu que exemplifica isso: o diplomata teria perguntado a importância da Revolução Francesa para o político chinês dois séculos após o acontecimento. A resposta do estadista é que era muito cedo para avaliar. Duzentos anos não daria para saber (risos). A forma de tomada de decisão na China é muito diferente do que acontece no Ocidente. Essa guerra tem um dono, que é o Putin. Na China, por mais que se tenham lideranças super fortes, ela não toma decisões irracionais. Ela está no papel dela: em cima do muro. Para os chineses, essa guerra é uma porcaria. O lado bom é que ela ganha informação: como o Ocidente reage a um estado fazendo uma grande besteira como os russos estão fazendo. Como a China vê o Ocidente como adversário, não é muito ruim ter essa informação. 

A China não vai arriscar seu posicionamento manufatureiro no mundo por uma aventura militar de um país que é uma fração do que foi e que não é mais uma fronteira tecnológica militar.

Mas os chineses podem ter iniciativas de ajuda aos russos?

Rodrigo Zeidan: Sim, mas não vão se desgastar e nem colocar a mão no fogo pelos russos porque não faz sentido econômico, geopolítico e muito menos militar. Eles não vão entregar armas para os russos. Os chineses, no máximo, vão comprar o que puder dos russos em termos de energia, vão exportar para os russos, vão ajudar alguns bancos russos, limitando o impacto das sanções para a economia russa. É o máximo que vão fazer, porque a maior parte do comércio entre os dois países acontece via empresas. E essas empresas vendem para o resto do mundo e não vão querer fazer parte de uma lista de restrições de venda para o Ocidente por venderam meia dúzia de migalhas para os russos. 

A China tem seus próprios planos, como você comentou. O que se pode esperar do país nos próximos tempos, já tendo em conta os efeitos dessa guerra?

Rodrigo Zeidan: A China, em chinês, significa “reino do meio”. Isso ainda vale hoje. O grande projeto da China é ser respeitada no mundo. O século XIX, por exemplo, é chamado por eles como o século da humilhação, em função da Guerra do Ópio. Mas hoje, ela já é respeitada e, aqui, temos um problema: porque quando se começa a ser respeitado, quer-se ser ainda mais respeitado. E quando isso para? Não sei. E que significa ser respeitado? Essas definições não são claras nem pelos líderes chineses. 

Na China, por mais que se tenham lideranças super fortes, ela não toma decisões irracionais. Ela está no papel dela: em cima do muro. Para os chineses, essa guerra é uma porcaria.

No passado recente um deles comentou que a China provavelmente será democrática no futuro, mas não se pode exigir que o processo aconteça da noite para o dia. É um assunto que não se fala por aqui hoje. Os objetivos, embora de longo prazo, podem mudar. Esse processo de desglobalização está claramente em andamento e nem os chineses sabem onde querem chegar com isso. Eles adorariam ser razoavelmente independentes, querem ser ricos e independentes dos “bárbaros”.  Hoje não dá para isso acontecer, mas a ideia no futuro é que se consiga ser rico sem ter de lidar com esse “bando de chatos do resto do mundo”. 

A África entra nessa conta, uma vez que se fala em grandes investimentos chineses naquele continente? 

Rodrigo Zeidan: Isso não é verdade. É uma narrativa. Se pegarmos dados existentes, vamos verificar que o impacto da China na África é pequeno. A África é monstruosamente grande, é diversa. A China tem investimentos por lá, da mesma forma que outros países. O interesse da China é diversificar portfólio, ou seja, fazer negócios com a África é barato, tem-se acesso a muitos minerais, etc. A China não quer dominar a África de nenhuma maneira. Não há chineses por lá. Também existia a narrativa que os investimentos da China eram uma forma de exportar capitais quando as reservas chinesas estavam em 4 trilhões de dólares. Isso é uma narrativa anti-China. Se pensarmos da mesma forma, vamos lembrar que as empresas de outros países estão na África há muito mais tempo do que as chinesas. Não estou dizendo que não tem impacto. A China aumentou o fluxo de capital para vários países africanos, têm dívidas pesadas sendo contraídas por alguns deles, mas não existe nenhum objetivo geopolítico da China em termos de dominação do continente africano. Trata-se de comércio, de se ganhar dinheiro.

Se pegarmos dados existentes, vamos verificar que o impacto da China na África é pequeno. A África é monstruosamente grande, é diversa. A China tem investimentos por lá, da mesma forma que outros países.

Você falou em narrativa e esse é um termo presente inclusive nessa guerra… 

Rodrigo Zeidan: É um grande problema, mas tem um lado ótimo. Vou fazer o contrário de reclamar de fake news. É melhor do que antigamente quando apenas recebíamos informações depuradas e distorcidas. O que se tem hoje é um problema cognitivo: as pessoas são bombardeadas de informação e não sabem separar as boas das ruins. Isso causa problemas e, de certa maneira, tem-se o viés da confirmação, o qual acontece o tempo todo. Eu, inclusive, escrevi um texto sobre ceticismo. As pessoas adoram debater usando informações que confirmam o que elas acreditam. “A OTAN é malvada” ou os “Estados Unidos são malvados”, então os russos têm razão e vice-versa. E, no fundo, essa invasão tem vários aspectos ruins, mas forçam as pessoas a criar processos de filtrar as informações. Isso pode render dividendos lá na frente, quando a sociedade evoluir, mas só se ela realmente evoluir. 




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